sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Crônica de Luís Fernando Veríssimo

Defenestração 

Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, deveria ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar Falácia em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A misteriosa Falácia Negra.
Hermeneuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Aonde eles chegassem, tudo complicaria.
-Os hermeneutas estão chegando!
-Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeneutas ocupariam a cidade  e paralisariam toda as atividades produtivas com seus enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem, deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas se recuperassem o seu sentido óbvio.
Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
-Alô...
-O que você quer dizer com isso?
Traquinagem deveria ser uma peça mecânica.
-Vamos ter que trocar a traquinagem. E o vetor está gasto.
Plúmbeo deveria ser o barulho que um copo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascina tanto quanto defenestração.
A princípio, foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Defenestrar devia ser um ato exótico praticado por poucas pessoas. Tinha até certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada devia sussurrar no ouvido de mulheres.
-Defenestrar?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas...Ah algumas defenestravam.
Também podiam ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveriam assim defenestradores profissionais.
Ou quem sabe aquelas palavras misteriosas que encerravam os documentos formais? Nesses termos, pede defenestração... Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer?, ou escada abaixo
Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente, procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. Defenestração vem do francês défenestration. substantivo feminino. Ato de atirar algo ou alguém pela janela.
Ato de atira algo ou alguém pela janela!
Acabou a minha ignorância, mas não minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte.Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé.Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimido a tempo.
- Les defenestrations. Devem ser proibidas.
- Sim; Monsieur le ministre.
- São um escândalo nacional.
- Ainda mais agora, com os novos prédios.
- Sim; monsieur le ministre.
- Com prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. Mas daí para cima, vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: Interdit de defenestrer. Os transgressores serão multados. Os reincidentes serão presos.
Na Bastílha o Marques de sade deve ter convivido com notórios de fenestreurs. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estra cheio de defenestradores latentes.
- E essa estranha vontade de atirar alguém pela janela, doutor...
-Humm. O impulso defenestrex de que nos fala Freud. algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar, diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de Ato atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente a esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de- mel, numa suite matrimonial, no 17º andar.
- Querida...
- Mmmm?
- Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
- Fala amor.
- Sou um defenestrador.
E a noiva, em sua inocência, caminha para cama:
- Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
- Fui defenestrado...
Alguém comenta:
- Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina, amassá-lo e defenestrar essa crônica. Se ela sair é porque resisti.

  

11 comentários:

  1. esta palavra caiu como uma luva , no sentido total.tenho muita vontade de fazer isto com uma pessoa.

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  2. esta palavra caiu como uma luva , no sentido total.tenho muita vontade de fazer isto com uma pessoa.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Ahahahah,ri às pampas!!!
    Nossa,por anos procurei por este texto!
    Tinha o livro "O Analista de Bagé",mas emprestei e nunca me devolveram!
    Muito obrigada!

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    1. Este texto está no livro "Comédias para se ler na escola". Tenho.

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  5. Ahahahah,ri às pampas!!!
    Nossa,por anos procurei por este texto!
    Tinha o livro "O Analista de Bagé",mas emprestei e nunca me devolveram!
    Muito obrigada!

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  6. Não entendi nada mas tenho que cópiar para um trabalho de escola então valeu

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    1. Eu também... Então obrigada também... Sua crônica e ótima

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    2. Eu também... Então obrigada também... Sua crônica e ótima

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  7. Como eu amo essa crônica, nunca me canso de ler.

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